terça-feira, 3 de julho de 2018

O Tempo e o Vento... (Contém spoilers)

“1745. No topo de uma coxilha, uma índia grávida, perdida no imenso deserto verde do Continente. O filho que traz no ventre é de um aventureiro paulista que a preou, emprenhou e abandonou. A criança nasce na redução Jesuítica de São Miguel, onde a bugra busca refúgio. A mãe morre durante o parto, esvaída em sangue. Esse bastardo, um menino, virá a ser um dos troncos da família que vai ocupar o primeiro plano do romance e que bem poderá ser (ou parecer-se com) o clã Terra-Cambará. Veríssimo traçou um ciclo que começou nesse menino e veio a encerrar-se duzentos anos mais tarde.”  
                                                                                         
Há tempos eu tinha vontade de ler na íntegra O Tempo e o Vento, obra-prima de Erico Veríssimo. Já tinha lido alguns trechos avulsos por aí, no entanto o medo de me comprometer com um romance assim tão longo me fez adiar essa empreitada muitas vezes, porque eu tenho tendência a fugir de calhamaços.
Na adolescência assisti a uma minissérie baseada no romance, só que naquela época eu não sabia que essa adaptação era apenas de partes da obra, isso me levou a achar que o Tempo e o Vento contava apenas a história de Ana Terra, Capitão Rodrigo e Bibiana. Mas não, trata-se de uma obra bastante mais extensa, dividida em três partes: O ContinenteO Retrato e O Arquipélago. Cada uma dessas partes está carregada de informações políticas, históricas e culturais acerca do povo gaúcho.
Erico Veríssimo conta a saga de uma família gaúcha e de sua cidade, Santa Fé, através de muitos anos, começando o mais remotamente possível no tempo. A narrativa abrange toda a história da formação do Estado do Rio Grande do Sul, iniciando por volta de 1745 até 1945. Veríssimo nos dá também de presente muita informação pertinente e interessante sobre o Brasil. Ele nos mostra – durante 200 anos – as mudanças significativas que ocorreram  e o rumo que o país vai tomando à medida que a história vai sendo contada. Nos mostra as lutas de fronteiras, a Guerra dos Farrapos e a Guerra do Paraguai. Nos apresenta Bento Gonçalves e sua luta em prol de uma república federativa. Fala também, incansavelmente, sobre Getúlio Vargas e seu Estado Novo. Nos presenteia com personagens fictícios inesquecíveis: Capitão Rodrigo Cambará, Bolívar, Licurgo, Fandango, Liroca, Don Pepe García, Tio Bicho, doutor Rodrigo Terra Cambará e seu irmão Toríbio e, finalmente, Floriano. Sem esquecer as personagens femininas, personagens fortes e importantíssimas no romance: Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria. E também as personagens mais jovens, porém não menos importantes: Flora Quadros, Luzia e Silvia… As mulheres de Santa Fé, aquelas que não iam para a guerra, mas que viviam a guerra e todos os seus dissabores no corpo e na alma, na exaustante tarefa de rezar e esperar.


Sem mulheres como a velha Ana Terra, a velha Bibiana e a velha Maria Valéria não existiria o Rio Grande. Elas eram o chão firme que os herois pisavam. A casa que os abrigava quando eles voltavam da guerra. O fogo que os aquecia. As mãos que lhes davam de comer e de beber. Elas eram o elemento vertical e permanente da raça.


Apesar de ter demorado mais do que pretendia para concluir a leitura, li com satisfação e alegria, em nenhum momento a leitura ficou arrastada, mesmo longa foi muito agradável e entretida.
Eu sofri com Ana Terra e sua vida tão difícil. Ri alto com o Capitão Rodrigo Cambará e sua célebre frase: “Cambará macho não morre na cama”… Que personagem danado de sensual e destemido! Senti pena de Flora Quadros e sua vida melancólica. Tive vontade de colocar Floriano no colo e niná-lo. Desejei muitas vezes bater um papo com o espanhol Don Pepe García e passar uma tarde só ouvindo Tio Bicho e suas teorias. Adoraria ficar escutando Toríbio contar sobre suas aventuras na guerra e suas conquistas amorosas. Admirei a perseverança de Bibiana e a postura sempre forte e altiva de Maria Valéria. Quis, mais de uma vez, dar uns tapas na cara do Dr. Rodrigo Terra Cambará… Valha-me Deus, que homenzinho pedante! Mas, apesar de seu pedantismo, seus exageros e cafajestadas, doutor Rodrigo Cambará com seu lado humanitário, sua demonstração de generosidade e sua tendência em ajudar os mais necessitados, me conquistou. Sua morte, no fim do romance, me emocionou muito, por isso ele acabou sendo um dos meus personagens preferidos.


Com o doutor Rodrigo não morre apenas um homem. Acaba-se uma estirpe. Finda uma época. O que vem por aí não sei se será melhor ou pior… só sei que não será o mesmo.




Sobre o autor:

Erico Veríssimo nasceu em Cruz Alta (RS), em 1905. Na juventude foi bancário e sócio de uma farmácia. Em 1947, Erico Veríssimo começa a escrever O Tempo e o Vento. Recebeu vários prêmios, como o Jabuti e o Pen Club. Faleceu em 1975.


O romance é maravilhoso. Já estou com saudades.

***


Deixo abaixo um vídeo da minissérie, que foi inspirada no romance e exibida em 1985 na tv aberta do Brasil. Para mim o Capitão Rodrigo terá sempre a cara do Tarcísio Meira. 🙂

sábado, 30 de junho de 2018

Maomé, uma biografia do profeta...

“É sempre difícil apreciar os livros sagrados de outras culturas.”

Baixar-Livro-Maome-Karen-Armstrong-em-PDF-ePub-e-Mobi-ou-ler-online-370x536Não estava em meus planos ler um livro relacionado à religião no momento, mas pelo fato desse tema ter sido escolhido para a leitura do mês de abril no Grupo de Leitura do qual participo, não houve escapatória. Como eu não sou de fugir da raia, encarei. A leitura, ao contrário do que eu esperava, me agradou um bocado. Não apenas porque me levou a aprender bastante acerca de uma cultura que eu desconhecia totalmente, mas também porque me deu motivação para começar a ler Salman Rushdie, um escritor que já estava na minha lista de espera há anosSem falar que eu adoro histórias ambientadas na Idade Média, então colocando na balança os prós e contras, posso dizer que Maomé, uma biografia do profeta, de Karen Armstrong, foi uma leitura boa e informativa.
O livro, publicado originalmente no Reino Unido em 1990 (no Brasil em 2002 pela Companhia das Letras) é interessante a começar pelo prefácio, escrito em 2001, apenas um mês após o atentado às torres gêmeas nos Estados Unidos.
Armstrong nos conta que decidiu escrever a biografia de Maomé em 1989, época em que veio à tona o caso Salman Rushdie.
Salman Rushdie, escritor inglês de origem indiana, escreveu Os Versos Satânicos, um romance que descreve um profeta fundador de uma nova religião. A história desse profeta, que foi supostamente inspirada na figura de Maomé, ocupa apenas 70 páginas do livro de Rushdie, mas ainda assim essas poucas páginas foram suficientes para provocar reações furiosas e violentas entre os muçulmanos. O romance ofendeu a comunidade muçulmana que entendeu que seu Profeta e maior representante da fé islâmica havia sido desrespeitado, por conta disso o autor dos Versos Satânicos foi considerado blasfemo. Sua situação agravou-se mais ainda depois que o Ayatolá Ruhollah Khomeini decretou uma fatwa que condenava o escritor e seus editores à morte. Khomeini induziu uma multidão de muçulmanos a queimar os livros de Rushdie em praça pública, apedrejar livrarias e a editora Penguin, responsável pela publicação do romance.
“Faço saber aos orgulhosos muçulmanos de todo o mundo que o autor de Os Versos Satânicos, livro que vai contra o Islã, o Profeta e o Corão, e todos os implicados em sua publicação que eram conscientes do seu conteúdo, foram condenados à morte. Peço a todos os muçulmanos que os executem onde quer que os encontrem. Caso morram na tentativa serão considerados mártires.” (Mensagem do Ayatolá Khomeini transmitida pela rádio Teerã.)
Dias após a transmissão dessa mensagem o Ayatolá Khomeini ofereceu também uma recompensa de três milhões de dólares para quem matasse Salman Rushdie, esse foi o estopim do caso que levou o escritor inglês a ficar por mais de uma década escondido sob forte proteção policial. Armstrong conta que depois da fatwa o preconceito contra os muçulmanos aumentou ainda mais. A autora afirma que embora no ocidente não tenhamos tomado conhecimento, a fatwa decretada por Khomeini foi condenada e considerada inválida por 44 dos 45 países muçulmanos que reafirmaram que ela violava as leis islâmicas pregadas por Maomé. Segundo a escritora, a decisão tomada por quase todos os países islâmicos não foi levada em consideração e nem colocada em evidência pelos meios de comunicação. Ou seja, o povo no ocidente continuou a acreditar que todos os muçulmanos clamavam pela morte de Rushdie. Foi no auge de toda essa confusão que Armstrong decidiu escrever a biografia de Maomé. Ela diz ter tido receio de que o ocidente nunca chegasse a conhecer de fato a verdadeira história do Profeta.

Escrevi o livro porque lamentava que o retrato de Maomé, apresentado por Rushdie, era o único que a maioria dos ocidentais teria possibilidade de ver.

Karen Armstrong é uma escritora britânica nascida em 1945. Foi freira católica durante sete anos, mas atualmente diz não professar nenhuma fé. É bacharel pela Universidade de Oxford e foi também professora de Literatura na Universidade de Londres. Em 1999 recebeu o Muslim Public Affairs Council Media Award. Em 2000 o Islamic Center of Southern California rendeu-lhe homenagem por promover o entendimento entre as três religiões monoteístas. Em 2017 recebeu o Prêmio Princesa de Asturias de Ciências Sociais. Armstrong já é bastante conhecida por seus livros que têm a religião como tema recorrente. Dentre suas obras mais importantes podemos citar Uma história de Deus (1994), Jerusalém, uma cidade, três religiões (2000) e Em nome de Deus (2001).
armstrong

Nesta biografia de Maomé, a autora dedica-se a contar sobre a formação do Islã desde os seus primórdios. Primeiro ela fornece ao leitor milhares de informações geográficas, em seguida faz uma excelente contextualização tanto histórica como política, moral e religiosa. Mostra também como era a Arábia nos tempos que antecederam Maomé, quando os habitantes ainda eram politeístas e adoravam a Caaba (o antigo santuário em forma de cubo situado no centro da cidade de Meca) e as três deusas pagãs: al-Lat, al-Uzza e Manat.
Ela fala sobre as tribos beduínas da Arábia no final do século VI, mostra os conflitos existentes e como eram exercidas as leis naquela época.
Maomé nasceu no ano 570 na tribo dos coraixitas e, de acordo com a autora, desde muito jovem mostrou-se bondoso, dedicado, inteligente, honesto e submisso a Deus. Trabalhou como vendedor/comerciante em caravanas no deserto. Armstrong traça o retrato de um Maomé justo e que luta contra uma sociedade politeísta para tentar consolidar a fé islâmica. 
No ano 610, no topo de uma montanha, na décima sétima noite do mês do ramadã, Maomé recebe por meio do Anjo Gabriel a primeira revelação de Deus. O profeta recebeu durante 23 anos seguidos mensagens que, segundo ele, foram ditadas pelo Deus de Abraão, o mesmo Deus dos cristãos e judeus. Esses versículos revelados a Maomé são chamados pelos muçulmanos de Sura. Mais à frente essas suras foram recolhidas e deram origem ao Corão, o livro sagrado do islã. 
Durante dois anos Maomé guardou segredo sobre as revelações recebidas, foi só no ano 612 que ele começa sua missão. No entanto, não foi fácil introduzir a fé monoteísta a um povo pagão, por isso Maomé acabou perseguido e precisou fugir de Meca. Em 622 ele refugia-se em Medina, mas continua em perigo durante alguns anos mais. Foi apenas em 630, após muitas lutas e batalhas sangrentas, que Maomé regressa e finalmente consegue conquistar Meca.
Nota-se claramente que Armstrong fez uma minuciosa pesquisa para escrever seu livro e contextualizar bem a história. Além disso, por ter se dedicado à vida religiosa por muitos anos e conhecer as escrituras sagradas tanto do Cristianismo quanto do Islamismo, tem bagagem cultural para falar a respeito do assunto. A lista bibliográfica que a autora utilizou é bem extensa, além dos dois primeiros biógrafos de Maomé, consultou também Dante Alighieri, Umberto Eco, William Montgorrey Watt, Wilfred Cantwell Smith, entre outros.
Durante toda a narrativa a autora faz comparações entre o Cristianismo e o Islã, principalmente quando tenta amenizar as atitudes violentas cometidas pelo Profeta nos primórdios da nova religião. Quando Maomé decidiu lutar em Badr e dizimou milhares de pessoas ou quando expulsou e massacrou as tribos judaicas, Armstrong justifica as atitudes do profeta afirmando que, naquela época, as posturas violentas e sangrentas eram necessárias para seguir adiante com os planos. Além disso, ela estabelece um comparativo entre esses atos sangrentos cometidos por Maomé e acontecimentos cristãos, como por exemplo, as Cruzadas, os Episódios dos Mártires Cristãos de Córdoba e a Queima de livros durante a Santa Inquisição.
Armstrong critica a imagem errônea que os ocidentais têm do Islã e seus seguidores e condena as falsas qualidades que a eles são atribuídas: violentos, opressores das mulheres, vingativos e terroristas.

Culpamos a religião da violência, quando na verdade a violência está na natureza humana. As guerras são invenções da civilização e estão presentes em todo tipo de sociedades, muito antes da chegada do monoteísmo.
Nós precisamos da história do Profeta nestes tempos perigosos. Não podemos permitir que os extremistas muçulmanos sequestrem a biografia de Maomé e a distorçam para servir a seus próprios fins.

Quando alguma passagem do Corão retirada do contexto é citada para justificar atos terroristas, Armstrong cita passagens das escrituras sagradas do Cristianismo e Judaísmo para comprovar que essas duas religiões também podem ser igualmente violentas, ela assegura também que a Bíblia tem mais passagens violentas que o Corão. Ela diz que a maioria dos ocidentais não é capaz de julgar o Islã de forma justa por ignorância, porque desconhece a cultura muçulmana. Além disso, mostra-se profundamente incomodada com a forma distorcida e equivocada com que os ocidentais se referem ao islã, principalmente quando é mencionado que essa religião é intolerante e fanática. Segundo a autora, os atentados terroristas cometidos por fundamentalistas não podem ser associados a Maomé, porque o profeta foi, na verdade, um homem que gastou parte de sua vida tentando impedir esse tipo de massacre. A palavra Islã, que significa submissão existencial de todo o ser a Deus, está relacionada à paz (Salam), dessa forma o Islã não poderia jamais ser taxado como uma religião agressiva e que insufla a violência já que seu Profeta pregava a harmonia.
Karen Armstrong diz também que no século XII os muçulmanos conviviam harmoniosamente bem com cristãos e judeus na Península Ibérica, que não foram os seguidores do Islã que começaram a brigar por sua fé, mas os cristãos que decidiram quebrar a relação de concórdia e tranquilidade existente entre as três religiões.

Finalmente foi o Ocidente, e não o islã, que proibiu a discussão de assuntos religiosos. Na Idade Média, os cristãos só foram capazes de ver o islã como uma versão fracassada do cristianismo e criaram mitos para demonstrar que Maomé fora instruído por um herege.

Maomé morreu em 632, mas um pouco antes de sua morte conseguiu unificar a Arábia e as Leis islâmicas. A experiência espiritual pela qual Maomé passou durante esses 23 anos mudou sua vida e de grande parte do povo árabe. O Islã atualmente é seguido por 1,2 bilhão de muçulmanos, um quinto da população mundial.
Eu gostei do livro, principalmente da contextualização histórica tão bem feita, porém não posso deixar de ressaltar que a autora apesar de ter muito conhecimento sobre o assunto não foi imparcial ao contar a história do profeta. Ela claramente escolheu um lado: o lado dos muçulmanos. Foi uma rasgação de seda o tempo todo. Todas as comparações que Armstrong faz é favorecendo o islamismo em detrimento do cristianismo e judaísmo. Fiquei meio sem entender o porquê… Será que ela teve medo de ofender a comunidade islâmica e ter que passar pela mesma situação que Salman Rushdie passou? O certo é que senti que Armstrong apenas defendeu Maomé, que é mostrado o tempo todo como um homem pacífico, desprovido de defeitos.

Maomé foi um pacifista que reuniu as tribos na tomada de Meca.


Há também passagens em que Armstrong faz comparações entre Maomé e Jesus e, nesses momentos, o profeta islâmico é sempre colocado em uma categoria superior a Jesus, o filho de Deus, para os cristãos.

Nunca lemos sobre Jesus rindo, mas com frequência encontramos Maomé sorrindo e brincando com as pessoas que lhe eram próximas.
Em vez de vagar como extraterrestre pelas montanhas da Galiléia a pregar e a curar, como o Jesus dos Evangelhos, Maomé teve de se engajar numa árdua luta política para reformar a sociedade (…)

É impressão minha ou Karen Armstrong chamou Jesus de alienígena? Que bom para ela que os intolerantes cristãos que ela tanto criticou em seu livro não decidiram criar uma fatwa para castigá-la por essa colocação tão fora de lugar. Por muito menos os pacíficos seguidores do Profeta Maomé, que ela tanto defende, teriam distribuído alguns tabefes (rsr) 🙂
Para finalizar, devo dizer que a leitura mais agradou que desagradou, no entanto eu adoraria mesmo saber a opinião sincera de Karen Armstrong sobre a atual situação do povo muçulmano: sobre os Refugiados na Europa, sobre os recentes ataques terroristas em Paris, Londres, Bruxelas, Berlim  e Barcelona.
“Se quiserem melhores resultados no século XXI da era cristã, os ocidentais deveriam aprender a compreender os muçulmanos, com quem dividem o planeta.”
Será mesmo, Sra. Armstrong, que a culpa é dos ocidentais e que apenas eles deveriam aprender a compreender e conviver bem com os muçulmanos? Sei não, tenho cá minhas dúvidas!

Palestra de Karen Armstrong:
Documentário sobre o Caso Salman Rushdie:

quinta-feira, 28 de junho de 2018

A casa das belas adormecidas...

” A mais bela das mulheres não poderia, durante o sono, dissimular a sua idade. Um rosto jovem é agradável durante o sono, mesmo que a mulher não seja uma beleza. Talvez não pudesse escolher, naquela casa, senão raparigas agradáveis de ver enquanto dormiam.”

casadasbelas3A primeira vez que escutei falar em Yasunari Kawabata foi em dezembro de 2005, naquela época acabava de ser publicado no Brasil o livro Memória de minhas putas tristesdo escritor colombiano Gabriel García Márquez. Muito se falava a respeito desse novo livro, pois foi a partir dele que Gabo colocava fim a um jejum de dez longos anos longe dos romances. Foi nessa onda de novidade e curiosidade que comecei a leitura… Já na orelha da capa fiquei sabendo que Memória de minhas putas tristes havia sido inspirado em A casa das belas adormecidas, do escritor japonês Yasunari Kawabata. García Márquez começa sua história com uma epígrafe retirada da própria história de Kawabata:
“Não devia fazer nada de mau gosto, advertiu a mulher da pousada ao ancião Eguchi. Não devia colocar o dedo na boca da mulher adormecida nem tentar nada parecido.”
O livro de Gabo não me agradou porque 
seu tema remete à pedofilia, um assunto que me causa repulsa e estranhamento, no entanto, a epígrafe deixou-me curiosa.
Conversando com algumas pessoas acerca dessa leitura frustrada, sugeriram-me ler o livro de Kawabata que, na opinião da maioria, é superior ao de Gabo. Passaram-se os anos e eu acabei descobrindo que García Márquez havia escrito também um conto baseado nesse livro (para ler o conto, clique aqui). Então, outra vez, a vontade de conhecer a história das Belas Adormecidas, voltou. Mas só agora, mais de uma década após aquela epígrafe, eu finalmente encarei o livro do escritor japonês.
A casa das belas adormecidas foi publicado originalmente no Japão em 1961. Li a edição portuguesa com tradução de Luís Pignatelli feita a partir da tradução francesa. Essa edição traz um prólogo estupendo do também escritor e amigo íntimo de Kawabata, Yukio Mishima. Pesquisando mais sobre o escritor, descobri que ele teve uma vida bastante conturbada e marcada por tragédias familiares. Aos dois anos ficou orfão e foi viver com os avós paternos; tempos depois, perdeu a irmã; mais à frente, os avós; alguns anos mais tarde, seu íntimo amigo, Yukio Mishima, cometeu suicídio. Lendo sobre todas essas situações trágicas pelas quais o escritor passou e pela vida repleta de perdas, não é por acaso que o autor coloca em seus livros tanta melancolia e até um quê de desespero.
Yasunari Kawabata nasceu em Osaka em 1899. Foi cineasta em sua juventude, um leitor voraz tanto dos clássicos como das vanguardas europeias. Foi um solitário durante praticamente toda a vida e uma pessoa torturada pela insônia. Escreveu novelas, contos, romances e é um dos escritores japoneses mais populares dentro e fora de seu país. Recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1968. A maioria de suas obras está marcada pela solidão e pelo erotismo, se destacam além de A casa das belas adormecidas, também Beleza e Tristeza e País da Neve. Apesar do seu discurso na cerimônia de entrega do Premio Nobel de Literatura ter sido contra o suicídio, Kawabata tirou a própria vida em 1972. 




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Yasunari Kawabata

A casa das belas adormecidas é um livro bem curtinho, apenas 128 páginas divididas em cinco capítulos. Narrado em terceira pessoa, conta a história de Eguchi, um idoso de 67 anos que, influenciado por um amigo, decide visitar uma casa clandestina, uma espécie de bordel japonês do final do século passado. Nessa casa é possível passar a noite ao lado de meninas jovens, lindas, nuas, virgens e adormecidas por meio de narcóticos. O amigo de Eguchi, Kiga, conta-lhe que os idosos uma vez ao lado dessas jovens passam a sentir-se vivos e vigorosos -, algo bastante incomum na idade em que eles se encontram, pois é justamente nessa altura da vida que a manifestação da morte tende a se repetir de maneira contínua, por isso a casa das belas adormecidas vai servir como uma espécie de refúgio sempre que o desespero de envelhecer se tornar insuportável.
Eguchi teve uma vida aparentemente normal, casou-se, teve filhas e netos e, à sua maneira, foi feliz. Contudo, sua velhice é repleta de melancolia, solidão e nostalgia. As partes que achei mais interessantes são justamente aquelas que remetem às lembranças remotas de sua juventude, lembranças essas que retornam com muita força durante os momentos em que ele permanece ao lado das jovens adormecidas. Mas, apesar de estar na companhia dessas jovens, ainda assim continua a sentir-se solitário, pois não pode compartilhar absolutamente nada com elas. O livro de Kawabata ao mesmo tempo que mostra a realidade de um homem idoso, solitário, inquieto e desprovido de virilidade, concede também ao protagonista um momento de reflexão sobre si próprio, sobre seus sentimentos, sobre sua capacidade de se emocionar e de se comover diante da proximidade da velhice. A realidade do velho Eguchi o incomoda, seu repúdio à situação em que se encontra é visceral, tanto que ele considera-se um ridículo por estar a dormir ao lado de meninas desmaiadas, quase mortas.

“E, contudo, poderia haver coisa mais horrível do que um velho que se dispunha  a deitar-se uma noite inteira ao lado de uma rapariga que tinham adormecido por todo esse tempo e que não abriria os olhos? Eguchi não teria por acaso vindo a essa casa para procurar esse absoluto no horror da velhice?”

Os idosos, frequentadores assíduos da casa, precisam seguir algumas normas restritas -, dentre essas normas está o fato de que é terminantemente proibido praticar relações sexuais com as meninas e, de forma alguma, é permitido despertá-las: “Não procure acordar a pequena. Porque, faça o que fizer para a acordar, ela nunca abrirá os olhos…” Eguchi, embora também seja um cliente da casa, acha que não faz parte do seleto grupo de ‘homens inativos’ -, aqueles que já não são capazes de satisfazer sexualmente a uma mulher, pois acredita que apesar de sua idade ainda não está completamente desprovido de masculinidade. A presença das jovens adormecidas desperta em Eguchi pensamentos eróticos, agressivos e violentos, a tal ponto de fazê-lo desrespeitar as normas estabelecidas pelo bordel.

“Na esperança de, antes de mais, acordar a rapariga, tratou-a brutalmente.”

Para o protagonista, infringir as regras significava vingar os outros velhotes que, segundo ele, passavam pela humilhação de dormir ao lado de meninas drogadas, quase mortas, inanimadas. Além disso, desobedecer poderia ser também uma forma de mostrar que não é ainda um ‘homem inativo’, um ‘não-homem,’ como os outros frequentadores da casa e, assim, comprovar a si mesmo que ainda é capaz de cometer atos viris. Ao decidir manter relação sexual com uma das meninas apercebe-se de que ela ainda é virgem, então chega à conclusão de que a virgindade da menina apenas confirma a incapacidade dos clientes; a virgindade dela corrobora não que os clientes respeitam a ferro e fogo as regras impostas pelo bordel, mas a impossibilidade que eles têm de consumar o ato sexual, por essa razão são chamados pela dona da casa de ‘clientes confiáveis’, ou seja, eram confiáveis pelo simples fato de serem desprovidos de virilidade.
Dormir ao lado de meninas tão jovens leva Eguchi ao caminho da autorreflexão. Ele passa durante as cinco visitas que faz à casa das belas adormecidas a analisar sua própria existência… A presença das jovens, a nudez delas, mas, sobretudo, a juventude delas, faz com que a personagem relembre fatos importantes e marcantes pelos quais passou no decorrer da vida.


Capa da edição portuguesa:



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imagem da capa: Close-up of a woman sleeping on the bed, por Tsukioka Yoshitoshi (1839-1892)

A casa das belas adormecidas é, a meu ver, um livro triste, incômodo, um livro que causa perturbação e confusão. A presença da morte dá uma aura de tristeza ainda maior à história, além disso, aborreceu-me um bocado ler sobre um homem/idoso que se relaciona com mulheres jovens, nuas, narcotizadas, adormecidas e completamente vulneráveis, desprovidas de todas as suas defesas… meninas à mercê de atos libidinosos.

“Está profundamente adormecida e não dá conta de nada. Porque a rapariga dorme de um sono só e do princípio ao fim ignora tudo. Mesmo com quem passou a noite…”

Senti, mais uma vez, que a objetificação do corpo feminino é, infelizmente, um tema recorrente. Mais uma vez a mulher é colocada como a responsável pelos atos nefastos cometidos por homens, mais uma vez a mulher é responsabilizada pelos desejos incontidos de homens.

“esta era uma jovem que tanto dormida como acordada incitava o homem com tal força que se agora Eguchi violava as regras da casa só ela teria a culpa do delito.”

Incomodou-me muito o narrador atribuir às meninas o sentido de algo inanimado, a natureza de um objeto, tratando-as como um brinquedo. Não me causou boa impressão, deveras!

“mas tinham feito dela um brinquedo vivo a fim de evitar qualquer sentimento de vergonha a velhotes que já nada tinham de homens. Ou, quem sabe, mais do que um brinquedo, para os velhotes desse tipo ela era a própria vida.  Uma vida que, assim, podia ser tocada com toda a segurança.”

Eu já conhecia a literatura de Kawabata por País da neve Beleza e tristeza, livros muito bons e que me agradaram bastante. No entanto, A casa das belas adormecidas deixou-me com um gostinho amargo na boca. Criei uma antipatia quase repulsiva pela personagem principal, provavelmente por conta da carga psicológica que a acompanha. Entretanto, o mérito de Kawabata está mesmo na beleza de sua escrita; entre os recursos empregados pelo autor, posso dizer que a descrição cuidadosa que ele utiliza ajuda a dar um toque poético à história… Por exemplo, quando ele fala sobre o vermelho das cortinas refletido nas tezes adormecidas das garotas, a posição em que elas dormem, onde colocam suas mãos, como é o formato de seus seios, a cor de seus cabelos… Sua bela descrição não limita-se apenas ao aspecto físico das meninas, mas também ao aroma delas. Ele fala sobre o cheiro do leite que sente em uma das jovens e que remete às lembranças do passado… Descreve de uma forma muito bonita as cores, a camélia desfolhada, o espaço físico onde se encontra a casa, o barulho do mar quando bate nas falésias… tudo isso acaba por dar uma atmosfera quase lírica ao texto.
Os incidentes registrados pelo autor convergem todos para uma estrutura narrativa cujo ponto de sustentação principal é a solidão, decorrente da senilidade. Essa solidão constitui um estado real e concreto de carência, algo que o protagonista no auge de seu contentamento por usufruir da companhia das jovens, não se dará conta. No entanto
, esse contentamento é efêmero, pois no decorrer da história ele perceberá sua decrepitude e tentará resgatar por meio da juventude das meninas sua própria juventude perdida.
A melancolia permeia todo o texto de Kawabata e, ao mesmo tempo que o autor mostra de uma forma bonita os momentos de reflexão da personagem, mostra também um estado de carência afetiva contra a qual o protagonista – apesar de suas limitações – tenta lutar. Contudo, essa luta é inútil, pois para o velho ficará claro 
o contraste existente entre a juventude das meninas e o horror de sua própria velhice. Ele comparará sua idade à das meninas, e a mocidade delas, ao invés de fortalecê-lo, o fará ter mais certeza de sua debilidade e da efemeridade da vida. Eguchi terá a noção exata de sua própria existência e entenderá, finalmente, que a juventude das moças não poderá retardar a passagem do tempo, apenas comprovará que a morte, nessa altura da vida, é inexorável.
“(…) as próprias belas adormecidas são fragmentos de seres humanos avivando o desejo na sua maior intensidade…” (Yukio Mishima)

Outras capas de edições em português:

terça-feira, 26 de junho de 2018

Jingwei aterra o mar... Uma lenda chinesa!

“Jingwei aterra o mar”

JingweiO deus Sol tinha uma filha muito amada, Nüwa, tão linda que até mesmo o Imperador Amarelo era cheio de admiração por ela. Quando o deus Sol não estava em casa, Nüwa brincava sozinha. Porém, ela queria muito que o pai a levasse consigo em suas viagens para o mar do Leste, onde o sol nasce.
O deus Sol, entretanto, estava todos os dias muito ocupado dirigindo o curso da aurora, a cada manhã, até ele se pôr, à noite, e não podia levar a filha consigo.
Um dia, Nüwa remou secretamente atrás do pai, num barco, mas infelizmente uma tempestade se levantou e ondas do tamanho de montanhas viraram a pequena embarcação. Nüwa foi engolida pelo cruel mar, para nunca mais voltar.
Seu pai foi tomado de tristeza, incapaz de mandar que os raios de sol brilhassem sobre ela e a trouxessem de volta à vida, ele foi deixado sozinho para prantear a sua perda. Entretanto, Nüwa renasceu como um pássaro de cabeça listrada, garras vermelhas e bico branco. Foi-lhe dado o nome de Jing-Wei, por causa de seu choro lamentoso: jingwei, jingwei.
Jingwei não conseguiu perdoar a crueldade do mar por ter lhe arrebatado sua jovem vida e prometeu vingança. Ela aterraria o mar e o transformaria em terra seca. Jingwei começou a catar seixos com o bico, voando de um lado para o outro, entre sua casa na montanha de Fajiu e o mar do Leste. Incontáveis vezes ela fez a viagem, carregando   um seixo ou um graveto por vez, voejando sobre as ondas irregulares e chorando lamentosamente, então deixando cair o que fosse que houvesse trazido. O mar encapelava-se e ribombava derramando escárnio sobre os esforços de Jingwei.

Pequeno pássaro, desista! Mesmo se trabalhar por um milhão de anos você nunca vai me transformar numa planície deserta!
Mas Jingwei respondia, lá do alto do céu: Mesmo que eu leve dez milhões de anos ou cem milhões de anos, até o final do mundo, vou tratar de aterrá-lo e fazer de você terra seca!
Por que me odeia tanto?, perguntou o mar.
Porque você roubou minha jovem vida e vai fazer o mesmo com outros jovens inocentes. Vou continuar pelo tempo que for necessário, até terminar meu trabalho.

E lá se foi ela para o alto gritando jingwei, jingwei, e dirigiu-se à montanha Fajiu para buscar mais seixos e gravetos. Para lá e para cá ela voou incansável, derrubando mais e mais gravetos no mar. Meses e anos se passaram até que um dia uma andorinha-do-mar apareceu. Ela ficou estupefata com o que o outro pássaro estava fazendo. Mas quando ouviu a história de Jingwei, a andorinha-do-mar comoveu-se com sua persistência. Eles se casaram e chocaram uma bela ninhada de filhotes – os machos puxaram o pai andorinha-do-mar, enquanto as fêmeas puxaram à mãe, Jingwei, e juntaram-se a ela na interminável tarefa de buscar seixos e gravetos para aterrar o mar.
Os chineses respeitam enormemente Jingwei por seu altruísmo, sua determinação férrea e sua força de vontade. Tao Yuamming, poeta da dinastia Ming, celebrou em versos a brava luta daquele pequeno pássaro contra as ondas do oceano, e a história se tornou sinônimo de idealismo invencível e de empenho árduo. A admiração das pessoas simples por Jingwei pode ser vista em vários monumentos a ela dedicados, que levam inscrições como “Jingwei aterra o mar”, que ainda podem ser vistos em vários locais às margens da costa leste da China.
** História retirada de Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida, da escritora Xinran. Livro tristíssimo que me fez chorar um bocado.
Desejo que em 2018 tenhamos todos pelo menos um pouquinho da persistência e força de vontade de Jingwei. 🙂
 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Todas as cartas de amor são ridículas...


“Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas (…)” 


Eu adoro poesia. E quando falo em poesia me vem logo à cabeça Fernando Pessoa e seus heterônimos, porque eles são os meus poetas preferidos. Além disso, adoro biografias, cartas, diários e tudo mais que me permita bisbilhotar detalhes privados da vida dos escritores que gosto. Então, quando vi na vitrine de uma livraria o livro Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz  publicado pela Editora Assírio & Alvim, em 2012, entrei imediatamente para comprá-lo. Fiquei curiosíssima para conhecer os pormenores do romance dos apaixonados.
O livro traz uma compilação de cartas que foram trocadas por Ofélia e Pessoa durante as duas fases do namoro que mantiveram. Agora ficou muito mais interessante ler essas correspondências, porque nos são apresentadas em forma conjunta e obedecendo um critério cronológico. Uma carta é sempre a resposta de outra, dessa forma os assuntos não ficam mais subentendidos, é possível seguir a leitura como se estivéssemos presenciando o diálogo deles realmente.
As cartas de Ofélia, que até bem pouco tempo não haviam sido publicadas em sua totalidade, quando lidas juntamente com as cartas de Fernando permitem-nos perceber que houve sim uma relação amorosa real, que não se tratou apenas de um amor platônico criado pela imaginação fértil do poeta.
O livro é composto de 185 documentos: 51 cartas de Pessoa e 129 de Ofélia, além de alguns telegramas e postais. As correspondências 
foram transcritas a partir de fotocópias dos manuscritos originais, cedidas pelos familiares de ambos os interlocutores. A nota introdutória informa o leitor que foram feitas algumas correções na ortografia para atualizá-la de acordo com o último acordo vigente e também para corrigir alguns pequenos erros. A pontuação, no caso das cartas de Ofélia, foi mantida, só foi mesmo corrigida nos casos em que poderia causar alguma ambiguidade. As datas das cartas, que originalmente são colocadas no final, foram deslocadas para o início para que o leitor pudesse ter uma melhor percepção da sequência cronológica. A edição é bem bonita e caprichada, além disso contém algumas explicações nas notas de rodapé.



Nas missivas do início da primeira fase do namoro, que durou de novembro de 1919 a dezembro de 1920, Pessoa mostra-se um homem apaixonado, romântico, em alguns momentos até ridiculamente meloso.

Adeus, amor. Beijos, beijinhos, beijões, beijicos, e beijerinzinhos do teu, sempre e muito teu
Fernando

Na segunda fase, que durou de setembro de 1929 a janeiro de 1930, percebemos que a correspondência é muito mais da parte de Ofélia que de Fernando… As cartas dele, quando chegam, são curtas e não apresentam mais aquele tom tão romântico e apaixonado do início da relação, o poeta mostra-se mais seco e distante. Já para o fim do relacionamento o discurso de Pessoa muda mais ainda, aquele tom meloso é substituído por um tom mais racional. O poeta, inclusive, escreve cartas para Ofélia e assina como um dos seus heterônimos, o antipático Álvaro de Campos, que ficamos sabendo através das cartas que era o heterônimo que Ofélia mais detestava.
Dessa forma, às vezes brincando e outras vezes falando sério, Pessoa decide dar fim ao relacionamento. No entanto, a culpa do término do namoro não foi unicamente dele, mas dos heterônimos que, segundo o escritor, eram muito exigentes.

O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que nao permitem nem perdoam.

Antes, quando eu lia na internet pequenos trechos das cartas de Pessoa para Ofélia e vice-versa, imaginava que o namoro deles havia sido algo assim meio sem graça, sem paixão. Mas depois de ter lido as cartas em conjunto, entendi que o tal relacionamento foi até bem picante para os parâmetros daquela época. Deu para perceber que o namoro do casal foi além dos olhos nos olhos, pois em seu textos captamos até mesmo pequenos traços de sensualidade e erotismo.

Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo… Meu Bebê pra sentar no colo! Meu Bebê pra dar dentadas! Meu Bebé para… Corpinho de tentação.
Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; Pões tua boquinha contra a boca do Nininho… Vem… Estou tão só, tão só de beijinhos…
Vou-me deitar Nininho, querer vir fazer óó comigo? Isso há-de ser um dia, mas não me chames descarada não?


Eu adoro as poesias de Pessoa, mas devo admitir que as cartas não me agradaram tanto assim. Achei que a maioria delas é bastante boba e infantil, sobretudo aquelas do início da relação. Além disso, senti pena de Ofélia, pois como deu para perceber ela se entregou demasiado a esse amor e sofreu bastante para superar o fim do relacionamento. Já Pessoa foi mais direto e racional e, para encerrar o relacionamento, escreveu clara e friamente sobre o fim do amor.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas cousas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como nao hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que nao são mais que partes da vida? (…) Quanto a mim… O amor passou.

Apesar de não ter gostado tanto assim das cartas (achei-as um bocado aborrecidas) valeu a pena a leitura, pois pude comprovar mais um vez que Álvaro de Campos tinha razão quando afirmou em seu poema que Todas as cartas de amor são ridículas.


Deixo aqui um vídeo com um poema de Álvaro de Campos, o heterônimo que Ofélia tanto detestava: