quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Terra Sonâmbula, Mia Couto...

“Se dizia daquela terra  que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho.”    
_terra_sonambulaHouve uma época que quando eu pensava em África as imagens que me vinham à cabeça eram de homens fortes, destemidos e belas mulheres, naturalmente sensuais em suas capulanas coloridas, rodeadas de miúdos felizes e barulhentos, no seu ir e vir pelas bonitas paisagens da savana, banhadas pelos raios de um dourado sol de fim de tarde. Não sei explicar muito bem a razão pela qual eu tinha essa concepção tão romântica e idealizada da África, mas o certo é que todo esse colorido que permeava a minha imaginação acerca desse continente ficou meio desbotado depois da leitura de Terra Sonâmbula, de Mia Couto.
Os tons que permeiam a obra desse escritor moçambicano nada têm de suaves ou coloridos, como eu imaginava. As imagens que Mia Couto compartilha conosco são outras. Ele nos apresenta uma Moçambique cinzenta e poeirenta, marcada pela severidade da guerra, pela pobreza, por sofrimento, abandono e devastação, muita devastação.
Como se sabe, esse país africano foi colônia portuguesa do início do século XVI até 1975. Para além de sofrer horrores com a escravidão e a exploração desenfreada, precisou passar por muitas provações durante a Guerra da Libertação. Foi necessário muito derramamento de sangue numa luta que durou dez anos para que só assim conseguissem se ver livres das amarras de Portugal. No entanto, a Independência de Moçambique não significou o início de uma terra pacífica, tampouco solucionou os problemas da nação. Dois anos após a independência, em 1977, o país mergulha outra vez em uma nova batalha: uma sangrenta guerra civil. A guerra civil em Moçambique durou até 1992. A população viveu quinze anos no meio de conflitos armados que deixaram mais de um milhão de mortos.




mia couto
Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra de oralidade. — Mia


Mia Couto, autor de Terra Sonâmbula, nasceu em 1955, na Beira, Moçambique. Filho de pais portugueses, é um dos escritores mais importantes em língua portuguesa da atualidade e também o moçambicano mais traduzido. Comprometido com a causa africana, Mia Couto viveu na pele os horrores da guerra: “tenho 42 anos e passei a metade da minha vida em guerra…” Ele retrata em seus livros a realidade de Moçambique por meio de elementos que pertencem ao próprio folclore moçambicano, servindo-se da literatura oral, crenças, mitos, provérbios etc. Ao entrarmos em contato com a escrita de Mia Couto, percebemos logo as muitas semelhanças com a literatura brasileira, sobretudo com Guimarães Rosa. Aliás, o escritor não esconde que sua escrita foi altamente influenciada pela literatura desse brasileiro. Recebeu numerosos prêmios, entre eles, o Prêmio Nacional de Literatura em Portugal (1992), o Prêmio Nacional de Literatura em Moçambique (1995), o Prêmio Africa Hoje em Maputo (2002), o Prêmio Eduardo Loureço (2011), Prêmio Camões (2013) e o prêmio norte-americano NeustadtAlgumas de suas histórias foram levadas ao cinema, como é o caso de Terra Sonâmbula e, mais recentemente, O Voo do Flamingo. Publicou também poesias e contos. Mia Couto vive em Maputo, onde trabalha como biólogo.




tuahir
Estou farto de viver entre os mortos — Fala de Muidinga


Com dois focos narrativos, Terra Sonâmbula tem como pano de fundo a guerra civil moçambicanaComeça com o velho Tuahir e o menino Muidinga caminhando sem rumo por uma estrada desolada. Encontram no caminho um machimbombo (ônibus) queimado repleto de corpos. Perto desse machimbombo – que será o refúgio do velho e do menino – encontram também outro corpo. Junto desse corpo estava uma mala, dentro da mala havia onze cadernos, eram os diários de KindzuO primeiro foco narrativo, relata em terceira pessoa a peregrinação de Tuahir e Muidinga em busca de paz num mundo devastado pela guerra. O segundo, narrado em primeira pessoa,  é o relato dos diários de Kindzu, que contam sua história de vida. Muidinga é um menino sem memória, foi resgatado pelo velho Tuahir mais morto que vivo, sonha em encontrar seus pais que o abandonaram logo após o nascimento e, assim, conhecer sua verdadeira identidade.
Tuahir é um homem idoso, já viveu e sobreviveu à outra guerra, a guerra da libertação, sonha com um mundo pacífico e luta para resguardar sua vida e a do pequeno Muidinga. 
Ambos caminham como se fossem sonâmbulos à procura de água e comida, mas procuram, sobretudo, preservar a esperança naquele mundo tão desesperançoso… “Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra.” Kindzu é um jovem idealista – que tenta ir muito além dos desejos comuns, abandonou sua casa em busca da realização do sonho de se tornar um maparamaguerreiro tradicional de justiça que luta contra os fazedores da guerra. Como podemos perceber, as três personagens são impulsionadas pelo desejo de realizar sonhos.
Após encontrar os cadernos, Muidinga começa a lê-los em voz alta para o velho Tuahir. À medida que o menino prossegue a narração, o leitor mergulha nas duas histórias, que são contadas de forma intercalada: primeiro a história de Tuahir e Muidinga seguida pelos relatos dos diários de Kindzu. A princípio essas duas narrativas parecem bastante diferentes, mas sem demora percebemos os muitos pontos que têm em comum… Elas caminham lado a lado mas, mais à frente, acabam por fundir-se. As histórias  serpenteiam entre a realidade e o sonho, sobretudo a de Kindzu, que é uma história mágica, mítica, que bebe no imaginário do povo africano. As lendas e crendices moçambicanas que permeiam os relatos de Kindzu causam um certo estranhamento mas, ao mesmo tempo, fascinação. A narrativa inteira é recheada de sonhos, aliás, todas as personagens, cada qual à sua maneira, sonham com alguma coisa. E todas têm o mesmo objetivo, encontrar a paz que há muito tempo havia deixado de existir naquele lugar desprovido de afeto e humanidade. Chamou muito a minha atenção o fato de algumas personagens continuarem a lutar por sobreviver em um mundo tão destroçado e abandonado, mesmo quando o mais fácil seria desistir, deixar de ter esperança. Percebemos isso quando conhecemos o Fazedor de Rios e o Velho Siqueleto, personagens que, como Tuahir, Muidinga e Kindzu, também sonham e acreditam que o melhor ainda está por vir, apesar das adversidades.

O que faz andar a estrada? É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
– Estou a fazer um rio.
– Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio, fluviando até ao infinito mar. As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas.


O conteúdo dos diários de Kindzu modifica a vida de Muidinga. Por meio dessas histórias ele passa a ter contato com o mágico, com o sobrenatural – e o leitor mergulha junto com ele nos contos do menino que vira galo, do boi que vira garça, do morto que levanta e carrega o próprio caixão, do anão que cai do céu, do mar que seca e volta a encher, da relação entre os vivos e os mortos… A visão do menino sobre o mundo modifica-se também, ele passa a presenciar mudanças na paisagem ao seu redor, que acontecem sempre após cada leitura.
Silviano Santiago, escritor brasileiro, disse certa vez: “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário…” É exatamente isso que acontece com o menino. Ao ler os relatos de Kindzu, ele, de certa forma, se apropria daquele mundo e o torna seu também. Então, 
nos damos conta do poder de transformação que a leitura tem, é a literatura a transformar o pequeno Muidinga.

À volta do machimbombo Muidinga quase já não reconhece nada. A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões.

Outro ponto muito interessante é a história de Faridauma personagem de peso. Kindzu a conhece dentro de um navio encalhado em alto mar. Ela conta sua história para o rapaz – e por meio de seu relato ficamos conhecendo um pouco mais das tradições e crendices de Moçambique. Farida nasceu gêmea, isso a coloca imediatamente no papel de mulher rejeitada, já que naquela cultura gêmeos é sinal de imensa desgraça e maldição. Mia Couto coloca nessa personagem toda a emotividade que viria a ser costumeira em suas personagens femininas. As palavras com as quais ele descreve Farida são carregadas de encanto. Com delicadeza e às vezes lançando mão de muita sensualidade, o escritor retrata a mulher de uma forma belíssima, e comprova, mais uma vez, a sensibilidade e habilidade que tem para descrever a alma feminina.

A beleza daquela mulher era de fugir o nome das coisas.

Mia Couto escreveu Terra Sonâmbula, seu primeiro romance, durante os anos da guerra civil moçambicana e o publicou em 1992, mesmo ano em que os conflitos chegaram ao fim. As histórias que ele retrata nesse livro fazem uma denúncia social das crueldades dessa guerra, mas contam também os sentimentos, as dores e dissabores daqueles que sobreviveram a ela, daqueles que ainda sofrem as mazelas e tentam cicatrizar as profundas feridas. O livro é excelente, a meu ver, mais por conta de sua escrita, pois Mia Couto usa uma linguagem muito particular e tem uma grande capacidade de reinventar a língua portuguesa. Ao criar neologismos e mesclá-los com termos das línguas africanas, faz com que seu texto se torne ainda mais bonito e cativante, até mesmo quando o que está a ser narrado é triste. O belo nem sempre é aquilo que ele está a narrar, mas a forma como narra. Terra Sonâmbula caracteriza-se pela paixão de contar: Kindzu que conta suas histórias nos cadernos, Farida que conta sua vida a Kindzu, Muidinga que conta a história de Kindzu ao velho Tuahir, Siqueleto que conta sua história a Muidinga e Tuahir… Tem sempre alguém a contar algo para outro alguém. Terra Sonâmbula é uma “contação” maravilhosa de histórias.
Pode parecer contraditório afirmar que um livro que narra tanta miséria e tristeza possa ser um livro belo, mas é. Terra sonâmbula para além de ser considerado uma das dez melhores obras africanas do século XX, comprova, mais uma vez, que o ato de contar histórias é um verdadeiro bálsamo para os sofrimentos do ser humano… Porque uma boa história nos ajuda a seguir em frente, nos livra das nossas angústias e preconceitos, nos ajuda a espantar a solidão e nos faz ter esperança…A escrita de Mia Couto é impecável, o escritor conseguiu fundir em uma mesma obra prosa e poesia de uma maneira ímpar – e nos prova que ele nasceu mesmo para escrever e é um contador de histórias genuíno. ❤

Capas de outras edições de Terra Sonâmbula:
terra1    terra2
terra3    terra4

Entrevista de Mia Couto:

Trailer de Terra Sonâmbula:

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